segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O potencial autoral das crianças

Sempre que me deparo com uma notícia dessa natureza, faço questão de postar aqui no blog, para mostrar o quanto ainda pode ser feito pelo incentivo à leitura numa sociedade cada vez mais "audiovisual". A seguir, vou apresentar dois textos que levam à reflexão sobre como podemos estimular crianças e jovens a se tornarem autores.

A escola e a criança autora: uma nova relação
“O aluno autor é aquele capaz de perceber que a leitura e a escrita [do mundo] são sempre movimentos inacabados”, Flavia Lobão.

Esta entrevista, feita por Marcus Tavares, foi clipada da publicação online "Revista Pontocom", disponível em http://www.revistapontocom.org.br/?cat=5. Os grifos no corpo do texto são meus.

Crianças e escola em três atos: um estudo sobre infância, cidadania e autoria nas séries iniciais do Ensino Fundamental foi o título da dissertação de mestrado de Flavia Lobão, professora da Escola Sá Pereira e do Centro de Educação Superior a Distância – Cederj/Unirio. Seu estudo, realizado em uma escola particular e num projeto de educação popular, traz à tona o entendimento, cada vez maior, de perceber a criança como autora e produtora de conhecimento.

Esse entendimento está ligado a uma concepção de infância, fruto de uma construção sócio-histórica que, segundo Flávia, não pode mais ser reduzida apenas a um tipo específico de grupo de crianças, muito menos a uma etapa de desenvolvimento. “Percebo hegemonicamente e ao longo da História que há uma certa dificuldade de abolirmos o ideário e as práticas de desqualificação que circundam a concepção de infância”, destaca.

Em entrevista à revistapontocom, Flavia fala sobre o entendimento da criança autora e o impacto que isto tem na escola e no dia a dia do magistério.

revistapontocom: Com que tipo de infância a escola lida hoje?
Flavia Lobão: Com vários tipos. É só pensar no tamanho do Brasil e na diversidade que temos. Não podemos, portanto, falar de infância no singular, senão de infâncias e muitas delas. Às diferentes condições que as crianças estão submetidas para viver o que chamamos de infância se relacionam, naturalmente, o contexto socioeconômico e cultural na qual estão inseridas.

Alguns autores sinalizam uma crise social da infância que não deve ser pensada fora do contexto da exclusão social, que, por sua vez, está diretamente ligado às variáveis de classe, etnia, gênero e cultura. Isto tudo somado, ainda, à presença, cada vez mais marcante, dos meios de comunicação de massa, com suas respectivas ideologias, e o avanço das próprias tecnologias.

Todo este conjunto, sem dúvida alguma, colabora para a pluralidade das infâncias que temos no mundo de hoje. Ao mesmo tempo, pensar as infâncias monoliticamente, encasteladas em suas classes e culturas, significa reduzir demais as possibilidades de transposição.

A infância, comumente tratada no singular, com tom de adjetivação e, muitas vezes, de desqualificação – infância vista como o lugar da falta e da ausência, da potencialidade ou ainda da pureza e do paraíso – não é mais que uma redução. Significa, na verdade, compreendê-la apenas como uma etapa, uma questão temporal e cronológica e que, por isso mesmo, passa.

Percebo hegemonicamente e ao longo da História que há certa dificuldade de abolirmos o ideário e as práticas de desqualificação que circundam a concepção de infância. Isto porque, talvez, pensamos pouco na dimensão de sua alteridade, ideia que até parece contraditória porque temos a impressão de que tudo o que se relaciona à infância já foi pensado pelos mais diferentes especialistas e profissionais de todas as áreas.

Acredito que os professores, especialmente no encontro com essas infâncias, podem caminhar em outra direção e com outro sentido se aceitarem, como propõe o filósofo Jorge Larrosa, que “a criança não é nem antiga nem moderna, não está antes nem depois, mas é agora, atual, presente”.


revistapontocom: Podemos pensar que vem daí, portanto, o investimento, cada vez maior, no protagonismo infantil, muitas vezes traduzido na defesa da autoria das crianças?

Flavia Lobão: Pode ser que esta questão da autoria seja o esforço de alguns educadores em não projetar, a priori, relações e possibilidades comumente pensadas no espaço escolar em termos de competências e ou incompetências. Pode também ser o esforço de não converter a infância aos nossos projetos para o mundo, para o futuro, o que nos faria lançar as crianças à velha condição do vir a ser.

Nesta condição, e com alguma sorte, as crianças seriam completadas pelos adultos com o que supostamente lhes faltam. Ou seja, virão a ser, uma coisa ou outra, depositárias e dependentes dos projetos e expectativas dos adultos. O interessante é que quando defendemos que as crianças, sujeitos de pouca idade, são autoras, mexemos com muitas questões e valores. Elas passam a dizer agora, no presente. É algo de hoje, do agora, do atual.

Podemos dizer que o aluno autor é aquele que consegue, a partir dos textos de que dispõe (e não apenas os escritos), de sua relação com o que já lhe foi dito, com os sentidos que já lhe foram apresentados, em diferentes situações de contextualização, (re)significar, criar outros sentidos, criativamente e criticamente se expressar, fazer travessura ao escrever, se posicionar, dizer, escrever a sua palavra. O aluno autor é aquele capaz de perceber que a leitura e a escrita [do mundo] são sempre movimentos inacabados.


revistapontocom: O que muda na escola quando este entendimento se faz presente? O que isto muda no dia a dia do trabalho do professor?

Flavia Lobão: Muitas coisas. O que muda é que, (re)pensando o(s) lugar(s) que as crianças ocupam, passamos a pensá-las e vê-las para além de uma etapa de desenvolvimento humano. Passamos a ouvir suas vozes. Este novo entendimento requer também um novo pensar do lugar da experiência, da imaginação e do lúdico, e uma disponibilidade, uma abertura, para a invenção, para a transgressão, para a subversão e criticidade da ordem das coisas.

A escola é, potencialmente, o primeiro espaço político e público – coletivo – para as crianças experimentarem a vida democrática ou a Educação como política da vida. Isso pode ser uma utopia, mas, talvez, conseguir fazer da escola uma organização “aprendente” pode ser um primeiro passo.


revistapontocom: Mas essa ainda não é uma realidade?

Flavia Lobão: As práticas escolares, em geral, negam às crianças sua condição de atores e autores de suas narrativas, com a concepção, também hegemônica, da tal infância de vir a ser. Assim é que, historicamente, as crianças vão se preparando, por exemplo, com “gotas homeopáticas” de leitura e escrita, para, quem sabe, serem no futuro, usuárias competentes de sua Língua.

Na maioria das escolas, essa relação, de trabalhar a Língua, é cerimoniosa e, em grande parte, visa a uma higienização da oralidade e da escrita não padrão que as crianças já trazem.


revistapontocom: A sua dissertação de mestrado teve exatamente o objetivo de evidenciar, por meio da escrita, a autoria das crianças, não foi isso?

Flavia Lobão: A dissertação problematizou a infância, discutindo as condições e as formas sob as quais um autor/criança pode acontecer na escola. Trouxe à tona muitos textos das crianças. O meu interesse era saber até que ponto a prática da autoria poderia ser catalisadora do aprendizado da Língua Portuguesa e do exercício de vivência cidadã.

As produções escritas das crianças são recheadas de marcas sociais e históricas, que poderão ser marcas de autoria se forem capazes de se inscrever num processo de discursividade: movimento de reconhecer a palavra do outro e reconhecer a sua. O trabalho também teve o objetivo de refletir como o espaço escolar constrói/constitui ou destrói essa discursividade. Não será nessa experiência de dizer/escrever a palavra, onde flagramos as suas cosmovisões, a sua autoria?

O Segredo dos Amuletos
O título acima, instigante e sugestivo, está relacionado com um projeto da Escola Estadual Professor Sérgio da Costa, em São Paulo. Trata-se de uma série de livros escrita em conjunto por estudantes do Ensino Fundamental.

Criado pela professora Sandra Martins Modesto, o projeto conta com a participação dos alunos Luan Cardoso de Carvalho, Thais Mariano de Sousa, Matheus Mendes da Silva e Paulo Giordan Oliveira, quatro mentes distintas, com ideias e formas de escrever diferentes, que resultou no livro "O Começo", com 180 páginas”, que é o primeiro de um total de dez volumes.

O processo de confecção do livro, lançado em setembro, envolveu e contou com discussões, desenhos (story board) e encenação para a construção das sequências da história, antes que fossem transferidas para o papel. Estas sequências eram divididas entre os autores e com tal metodologia foi possível escrever mais de dez capítulos de uma só vez.

Será que eu conseguiria tal façanha com meus alunos de Design?

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